quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Povo que lavas no rio…



Maria, morta de cansaço, continua a limpar o armazém da loja onde tinha guardado uma vida de trabalho, canseiras e expectativas. Já não consegue chorar mais depois do rio de lágrimas vertidas nas águas lamacentas que lhe destruíram os sonhos e o ganha-pão. Resta-lhe apenas recomeçar do nada e olhar para o futuro com a esperança de que ele terá dias melhores que o de hoje. Como ela, muita gente perdeu os seus haveres, e, algumas, a própria vida.
A questão das alterações climáticas, tão em voga, não se coloca neste caso, uma vez que sempre houve cheias ocasionais nas zonas urbanas, até porque estas geralmente se localizam junto a cursos de água, fonte de vida e de abundância ao longo dos séculos, não só para o abastecimento das habitações mas também para as actividades comerciais, piscícolas e agro-pecuárias. A questão principal é o aumento do potencial destrutivo das cheias, pois, a insensibilidade demonstrada pelos portugueses ao nível do ordenamento do território permitiu uma construção imobiliária desregrada que, sufocando as linhas de águas e as bacias hidrográficas, impede o escoamento da água, levando-a a extravasar o seu leito natural com uma grande facilidade e a ocupar caves e a arrastar tudo o que estiver à sua frente. A natureza tem as suas regras, regenerando-se a cada passo. Todavia, o Homem gosta de minorar essa capacidade e as implicações quem tem para a sua vida.
É fácil fazer o diagnóstico e apontar as causas e os responsáveis das cheias, ou, pelo menos, dos prejuízos. Já evitá-lo é mais complicado, pois implica custos muito avultados que nem as autarquias nem o Estado querem suportar, pois é preferível aplicar esse dinheiro em estádios de futebol e exposições que, pela sua natureza, garantem mais votos aos partidos e uma maior visibilidade ao país. Nem as vidas humanas perdidas nos cataclismos justificam esses investimentos…
Na madrugada de domingo foi bem visível o abandono a que as vítimas das inundações ainda estão votadas. Por coincidência, nessa mesma noite, passou um programa na RTP1 sobre as cheias de 1967, 1983 e 1997. Em comum com a de domingo, têm a destruição e o alheamento do poder político em relação ao sofrimento das populações, como se nada tivesse a ver consigo, até porque os processos de loteamento que desembocam em crimes urbanísticos surgem por obra do Espírito Santo. O Ministro do Ambiente apressou-se a dizer que a limpeza das sarjetas e das valetas é da competência das autarquias, o que, desde logo, põe em causa a existência do seu ministério, uma vez que é o responsável pela limpeza periódica das linhas de água. Já o Primeiro-Ministro, que nesse mesmo dia deu uma entrevista na SIC, entreteve os portugueses com os benefícios da sua governação e não teve uma única palavra de conforto para os que sofreram na pele os efeitos das inundações, reacção idêntica à de Salazar em 1967. Por aqui se vê que o governo vive num mundo de ilusão em que tudo é positivo, negando, por consequência, a realidade vivida pelos cidadãos. Quanto aos autarcas, responsáveis directos pelo ordenamento do território e pela condução da protecção civil ao nível local, fecharam-se nos seus quartéis-generais a comandar as tropas e evitaram, a todo o custo, contactar as populações que os elegeram e reconfortar as vítimas a quem, no dia anterior, exigiram o pagamento dos seus ordenados. Houve certamente excepções, nomeadamente, em Oeiras, Cascais, Setúbal e Sintra. Já em Loures, Odivelas e Amadora muita gente se queixou de não receber apoio de ninguém, inclusivamente, das juntas de freguesia.
Isto coloca a questão sobre a eficácia dos sistemas de protecção civil e da sua articulação entre o Estado e as autarquias. Será que a Protecção Civil existe apenas para garantir grandes tachos a gente que ninguém sabe muito bem ao certo o que faz porque os resultados da sua acção são imperceptíveis? Gostaria de responder negativamente a esta questão mas a realidade diz-me que é precisamente isso o que acontece.
A solução deve passar por criar estruturas intermédias que façam a gestão destas situações de forma integrada, ou seja, que actuem na área metropolitana como um todo, porque os municípios não têm capacidade de resposta a estes problemas e as bacias hidrográficas não conhecem fronteiras administrativas. A regionalização, se lhe quisermos chamar, de determinadas competências, é essencial para a resolução de questões que, pela sua natureza, ultrapassam o âmbito local mas que não justificam uma abordagem nacional. A Protecção Civil, os transportes e a gestão de resíduos, só para dar alguns exemplos, são áreas que devem fomentar ou aprofundar este tipo de solução.
A Autoridade Metropolitana de Protecção Civil de Lisboa (a criar) devia elaborar mapas de risco e ter o poder de impedir todas as construções que não visem o reforço da segurança, assim como apresentar soluções para evitar ou atenuar os efeitos das inundações (incluindo a demolição de edifícios). Devia também ter planos de contenção e emergência que disponibilizassem ajuda às vítimas das cheias, nomeadamente, alojamento e alimentação no período subsequente à catástrofe.
Os partidos políticos, principalmente o PSD, não só pelo seu peso ao nível autárquico mas também pelo seu percurso na governação do país, devem servir as populações que votam em si em cada eleição e que pagam diariamente os seus impostos na esperança de verem os seus problemas resolvidos, em especial, nas aflições e nas situações críticas em que ficam com a vida destruída, muitas vezes sem culpa alguma.

Jorge Janeiro

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